HAMLET 2012:
"UM CONVITE DE OUTRAS SEREIAS"
Por: Maurício Gonçalves


As identidades e práticas culturais estão na ordem do dia. Sublinhar a heterogeneidade de grupos – estigmatizados ou não – incluídos à revelia na recente globalização, destrói todo um pensamento hegemônico. Qual seja, vivemos por muito tempo, nós, ocidentais, sob a égide de um binarismo de base. Acreditávamos no “bem em si”, e nas escolhas únicas entre pares antagônicos – homem/mulher, senhor/escravo, capitalismo/comunismo. O que está em jogo é a criação de caminhos transversos, de sentidos que excedam estas dicotomias. Vale lembrar o Deleuze de Mil platôs, ao propor um espaço transiente. A troca da lógica do “isto ou aquilo” pelo “isso e aquilo”. E aí entra em cena o papel das diferenças.

Vivemos numa sociedade descentrada, que começa a gerir suas peculiaridades através das famosas “guerras de identidade”. No lugar de um Homem, existe um indivíduo que, espantado, descobriu que sua vontade não passava de uma ilha no oceano de si mesmo. Não somos donos de nossas aparências, ferozmente cultivadas por mentiras e mitos “congênitos”. Descobrimo-nos apenas células quando procurávamos o deus da cidade. Os anos sessenta estão a colher seus frutos nesse momento. A contingência e o caráter não sintético dos empreendimentos brilham na ponta do iceberg. Uma síntese fecha um discurso, cria uma certeza, fecha os possíveis horizontes, resseca o solo do conhecimento.

Hamlet 2012 me parece uma proposta imbuída desse novo espírito. É uma aposta. Cada um tem seu Shakespeare. Harold Bloom entronizou o bardo no centro do cânone ocidental; Peter Brook, em suas encenações, surrupiou o “respeito” pelo tradição do império; Tom Stoppard tirou-lhe as calças. O grupo da Trupe Intacta Retina, formado basicamente por mulheres, pretende – e é assim que me parece – destruir a máquina de alteridade que conformou a mulher, aqui, por estas plagas. Não é um Hamlet feminino. É um flerte, uma obra aberta, em processo, um trabalho de reconfiguração. Seja dito: Carolina Floare, a tradutora dessa montagem, é a própria imagem das novas articulações. Bailarina, portuguesa, poliglota, “brasileira”, atriz, escritora e tudo que o verso ainda tiver fôlego para dizer. Portanto, o que se espera não é somente uma “peça de teatro”. Sim, um convite de outras sereias, de novas cantoras. Que o Ulisses-espectador se perca e jamais retorne à casa. Para o emigrado, toda terra é estrangeira, inclusive a sua origem.

Hamlet mulher, interpretada por Carolina Floare
Prêmio Arlequim Melhor Atriz do X Festival de Teatro Cidade do Rio de Janeiro (2012)